Há textos que nos marcam na vida. Este que hoje aqui reproduzo, extraído do álbum Desiderata, da autoria de Vítor de Sousa, é incisivo e identifica um problema que hoje muitas famílias vivem. Não temos tempo ou temos outras prioridades?
"Sabes, meu filho, até hoje não tive tempo para brincar contigo. Arranjei tempo para tudo, menos para te ver crescer. Nunca joguei dominó, damas, xadrez ou a batalha naval. Eu percebo que tu me procuras, mas sabes, meu filho, eu sou muito importante e não tenho tempo. Sou importante para números, convites sociais e toda uma série de compromissos inadiáveis. Como largar tudo isto, para ir brincar contigo? Não, não tenho tempo.
Um dia trouxeste o teu caderno escolar para eu ver e ficaste a meu lado. Lembras-te? Não dei atenção e continuei a ler o jornal. Porque afinal os problemas internacionais são mais sérios do que os da minha casa. Nunca vi os teus livros, não conheço a tua professora. Nem me lembro qual foi a tua primeira palavra. Mas tu sabes, eu não tenho tempo. De que adianta saber as mínimas coisas a teu respeito, se eu tenho outras grandes coisas a saber. É incrível como tu cresceste! Estás tão alto! Não tinha reparado nisso. Aliás eu quase não reparo em nada. E na vida agitada, quando tenho tempo, prefiro usá-lo lá fora, porque aqui fico calado diante da televisão. Porquê? Porque a televisão é importante e informa-me muito.
Sabes, meu filho, a última vez que tive tempo para ti, foi numa noite de amor com a tua mãe. Eu sei que tu te queixas, eu sei que tu sentes a falta de uma palavra amiga, duma brincadeira, dum chuto na bola. Mas eu não tenho tempo. Eu sei que sentes a falta de um abraço e de um sorriso, de um passeio a pé, de ir até ao quiosque, ao fundo da rua comprar um jornal, uma revista. Mas sabes há quanto tempo eu não ando a pé na rua? Não tenho tempo. Mas tu entendes, eu sou um homem importante. Tenho de dar atenção a muito gente, eu dependo delas. Meu filho, tu não entendes nada de comércio. Na realidade eu sou um homem sem tempo. Eu sei que tu ficas triste, porque, as poucas vezes que falamos, é um monólogo; só eu é que falo.
Eu quero silêncio. Quero sossego e tu tens a péssima mania de querer brincar com toda a gente. Tens a mania de saltar para os braços dos outros. Filho eu não tenho tempo para te abraçar. Não tenho tempo para conversas e brincadeiras de crianças.
Filho, o que é que tu percebes de computadores, comunicação, cibernética, racionalismo? Tu sabes quem é Descartes e Kant? Como é que eu vou parar para falar contigo? Sabes, meu filho, não tenho tempo. Mas o pior de tudo, o pior de tudo é que, se tu morresses agora, neste instante, eu ficava com um peso na consciência. Porque, até hoje, não arranjei tempo para brincar contigo, e, na outra vida, Deus não terá tempo de me deixar pelo menos ver-te."
Vítor de Sousa
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